
O filme japonês de horror psicológico, Audition, tem sido responsável por deixar muitos cinéfilos de boca aberta, nos últimos anos. É quase Fatal Attraction com um sentido de moralidade, em vez de uma necessidade de ser conveniente – especificamente, o tema do filme é a criação das mulheres-objecto na sociedade japonesa e a terrível imagem invertida de retribuição que isso pode criar.
Tratar os espectadores de cinema de forma condescendente, protectora e paternalista pode ser uma forma segura de fazer dinheiro, mas os filmes resultantes são como escrever na areia; Audition não tem essa impermanência. Com uma calma que é meticulosamente transformada em melancolia e depois numa tensão aterradora, o realizador Takashi Miike conduz-nos lentamente. Na primeira parte, o filme tem a simplicidade formal de um trabalho de Yasujiro Ozu, o realizador japonês conhecido pelos seus melodramas minimalistas, nos quais falta um elemento vital a uma família. Em Audition, esse elemento é a esposa. O rosto de Aoyama (Ryo Ishibashi) está indolente, com tristeza. Ele é um viúvo que criou o seu filho sozinho. Este cidadão sensato é finalmente persuadido a procurar uma nova mulher, por um amigo com uma ideia peculiar. Aoyama é um produtor de televisão, e esse amigo põe-no a tentar encontrar alguém, fazendo audições a mulheres sob o pretexto de procurar uma actriz para o seu próximo projecto.
Asami (Eihi Shiina) capta a sua atenção. Um discreto "docinho", vestido de branco imaculado. Depois de alguns encontros românticos, ela desaparece e Aoyama, que se permitiu ser vulnerável, fica destroçado. Quando descobrimos o que Asami tem andado a fazer enquanto não tem visto Aoyama – além de estar, ao que parece, sentada, imóvel, junto ao telefone – o coração salta um batimento cardíaco (facto: fiquei com os lábios e as pontas dos dedos dormentes)
O filme é sobre vítimas – Asami, sem qualquer sombra de dúvida, sofreu mais que Aoyama – mas é também um grandioso espectáculo, chocante e repugnante.
Em Audition, o horrível desfecho é merecido. Os talentos de Miike incluem a paciência. Nada aqui é apressado, e ele deixa o terror crescer, acumular-se.
A solidão de Aoyama dá forma e densidade a Audition. É um elemento profundo que proporciona ao filme um interesse enraizado, e ele parece um homem demasiado decente para concordar com o esquema tosco, de transformar mulheres em artigos de mostruário.
A perícia de Miike vem no desenvolvimento de pormenores emocionais/afectivos e no seu talento de nos dar a informação na altura certa. Aoyama não consegue evitar suscitar uma certa ambivalência. Apesar de compreendermos a sua angústia, sabemos que ele fez algo de muito errado. Era mais fácil se ele fosse mau, ou maluco. Mas é pior – basicamente, ele é um romântico desesperado que se desgraçou por uma miragem. Quando a visão clareia e ele vê o que está realmente lá, é demasiado tarde. Miike não mantém tudo suspenso: ele esconde a informação de Aoyama, mas não de nós.
O mais eficaz e inesquecível terror é representado com cara limpa e séria, sem pestanejar nem sorrir afectadamente para nos deixar mais tranquilos. Audition podia ser uma história de O. Henry, realizada por Douglas Sirk, género Written in the Wind, e as cenas onde o autêntico coração das trevas é revelado são horrendas e verdadeiramente arrepiantes, capazes de nos dar pesadelos terríveis (Kiri kiri kiri kiri kiri!).
Está além do que Aoyama poderia imaginar e, provavelmente, o espectador vai ter um flashback da primeira imagem de Asami, “embrulhada” de branco. Aoyama estava a prestar, também, uma audição. Infelizmente, para ele, não correu bem.
Audition é uma verdadeira obra-prima, mas como qualquer audição, é um teste à coragem e aos nervos.