BLOW OUT (1981, Brian De Palma)

Aos quarenta, Brian De Palma tinha passado mais de vinte anos a realizar filmes. E ao longo desses anos ia ficando cada vez melhor. Todas as vezes que aparecia um novo filme seu, tudo o que ele tinha feito anteriormente parecia ter sido preparação. Com
Blow Out, protagonizado por John Travolta e Nancy Allen, escrito e realizado por De Palma, deu o seu maior salto. Quem conhece os filmes de De Palma viu esboços anteriores de muitas das personagens e cenas deste filme, mas que serviam objectivos mais limitados (e muitas vezes irónicos).
Blow Out não é uma comédia nem um filme mórbido; envolve o assassinato do mais popular candidato à presidência dos Estados Unidos, então pode ser chamado um thriller político, mas não é verdadeiramente um filme de género. Pela primeira vez, De Palma entra dentro da personagem central, Jack Terry (Travolta), e mantém-se lá. Ele tornou-se um tão grande especialista nas técnicas de suspense, que consegue usar o que sabe com ainda mais expressividade. Não se vêem “cenas” em
Blow Out – o filme flui e tudo o que acontece parece entrar directamente na nossa cabeça. É alucinatório e tem uma claridade e inevitabilidade quase sonhadoras, mas nunca cometemos o erro de pensar que é só um sonho. De Palma saltou para o sítio que Altman atingiu com filmes como
McCabe & Mrs. Miller e
Nashville, e que Coppola alcançou com os dois primeiros
Godfather, onde o género é transcendido e o que nos estimula é a visão do artista. E Travolta (depois de se ter perdido em
Saturday Night Fever) dava também o seu próprio salto, de volta ao topo.
Jack, um homem dos efeitos sonoros, que trabalha para um realizador de filmes “exploitation” em Filadélfia, está certa noite nas imediações da cidade, a gravar sons sussurrantes da natureza e ambiente. Capta a conversa de um casal de namorados e o pio de uma coruja, quando subitamente o silêncio é interrompido pelo barulho de um carro que atravessava uma ponte a grande velocidade; um tiro, um rebentar de pneus e o embate do carro na água. Ele salta para o rio e nada até ao carro que se afundava; o condutor – um homem – está morto, mas uma rapariga (Nancy Allen), trancada no interior, grita por socorro. Jack parte uma janela com uma rocha que apanha do fundo do rio, puxa-a para fora e leva-a para o hospital. Quando ela já tinha sido tratada e o corpo do condutor – o governador que planeava concorrer a Presidente – chegava ao hospital onde estavam, este estava apinhado de polícia e funcionários do governo. O relato de Jack sobre o tiro antes do pneu rebentar é ignorado e ele é fortemente pressionado pelo assessor do falecido. É-lhe dito para esquecer que a rapariga ia no carro; que era melhor o governador morrer sozinho – para proteger a sua família dessa humilhação. Jack instintivamente contesta este encobrimento, mas ao fim de algum tempo deixa-se levar. A rapariga, Sally, está sedada e mal consegue estar de pé, mas está determinada em fugir de lá; o assessor põe-los cá fora, sorrateiramente, e Jack leva-a para um motel. Mais tarde, quando ele junta o som que captou em fita com as fotografias tiradas por Manny Karp (Dennis Franz), um fotógrafo que também presenciou o despiste, fica com provas convincentes de que a morte do governador não foi um acidente.
Blow Out é uma variação de
Blow-Up (1966) de Antonioni, e a ideia central provavelmente vem da piada do filme de De Palma:
Greetings (1968). Um jovem tenta mostrar à sua namorada fotografias ampliadas que ele afirma que vão desvendar o caso Kennedy. Aborrecida, ela diz: “Eu vi o Blow-Up; eu sei como é que isto acaba. Está tudo desfocado, não se consegue ver nada.”. Mas não há nada desfocado neste filme. Também é uma variação sobre
The Conversation de Coppola (1974), e está subliminarmente relacionado com alguns eventos políticos da altura (como a morte de Chappaquiddick e de Nelson Rockefeller). E enquanto o filme avança e o fanático assassino Burke (John Lithgow) aparece, também coincide com as “operações clandestinas” e “golpes baixos” da administração Nixon. É um filme “Watergate” e em teoria pode parecer ser só um melodrama político, mas tem uma força e uma intensidade que o faz ser diferente de qualquer outro filme político. Se estamos num automóvel que derrapa de encontro a uma barreira de protecção ou a uma árvore, os nossos sentidos estão despertos, e no último momento antes da pancada estamos extremamente, quase friamente, conscientes de tudo o que se passa à nossa volta. É o efeito de transe por vezes traduzido no ecrã através da câmara lenta. De Palma mantém os nossos sentidos aumentados dessa maneira, do início ao fim de
Blow Out; todo o filme tem a força arrebatadora que ele conseguiu nas sequências em câmara lenta de
The Fury. Só que, aqui, De Palma consegue fazê-lo à velocidade normal.
Aqui é onde entra toda aquela preparação. Há quartos vistos de cima – um plano elevado de Jack rodeado por equipamento, outro de Manny Karp escarrapachado na cama – isso faz lembrar o uso de planos elevados de De Palma em
Get to Know Your Rabbit de 1972. Ele leva as técnicas de “split screen”, que já tinha usado em
Dressed to Kill (1980), ainda mais longe; a câmara circular que ele praticou em
Obsession (1976) une-se ao som circular, e Jack está no meio. De Palma aprendeu como fazer com que cada movimento de câmara signifique somente o que ele quer que signifique; e nesta altura ele tinha esse conhecimento nas pontas dos dedos. A pirotecnia e a câmara rotativa não dizem: “Olhem para mim!”; elas dão poder ao filme. Quando aquela coruja a piar preenche o lado direito do ecrã e a sua cabeça roda, já estamos num estado tão exaltado e tão tenso que ela parece estar mesmo ao nosso lado. O director de fotografia, Vilmos Zsigmond, trabalhou com a sua própria equipa de assistentes, filma cenas à noite que fazem lembrar quadros em veludo preto tão vivos que podemos entrar neles; e vistas surreais da cidade em plena luz do dia – vemos prédios a centenas de metros como se estivessem dentro de uma bola de cristal na nossa mão. As cores são carregadas, não exactamente tropicais, mas quentes, tórridas.
Blow Out parece-se muito com
The Fury; tem o mesmo calor, mas com maior profundidade e nitidez. É polido e tem um brilho laranja, como os anéis de um velho aquecedor ou vidro derretido – como se a luz viesse de trás do ecrã. E porque a história gira em torno de sons, existe grande preocupação com o silêncio. É um filme feito por perfeccionistas (com montagem do companheiro de longa data Paul Hirsch, e design de produção por Paul Sylbert), mas não é absolutamente nada complicado, nem exagerado. De Palma é fantástico, a escrita livre e solta, neste filme, deu-lhe o que ele precisava (não o prendeu, como alguma da escrita em
The Fury), e ter Zsigmond ao seu lado, ajudou-o a libertar-se para estar com as personagens.
De Palma foi acusado de ser um marionetista e de fazer os actores trabalhar para ele. (Por vezes deve ter que o fazer) Mas, aqui, certamente não é o caso. Travolta e Nancy Allen são actores cheios de alegria, e ele deixa essa mesma alegria ter o seu resultado; ele deixa-os trabalhar a representação também. Travolta já tinha contracenado com Nancy Allen em outro filme de De Palma,
Carrie (1976), e pareciam funcionar bem enquanto equipa; qunado representam juntos, têm a mesma quantidade de energia – são igualmente vigorosos e intensos. Em
Blow Out, no momento em que Jack e Sally falam um com o outro, sentimos uma ligação entre eles, apesar de ele ser inteligente e saber falar e ela parecer-se com uma coelhita fofa e burrinha. Nas cenas iniciais, no hospital e no motel, quando Sally, a loira de cabelo encaracolado implora a Jack para a ajudar, ela é uma boneca, pedrada, com uma voz rouca de menina pequenina, como Bette Midler em
The Rose – metade indefesa, metade a gostar de fazer de indefesa. Quando Sally está completamente desperta, conseguimos ver que ela usa o número de loura pateta para as pessoas com quem lida, e podemos ver o raciocínio por trás dele. Mas depois os olhos dela entristecem com angústia, quando ela sabe que o que fez estava errado. Nancy Allen agarra no que costumava ser um estereótipo de menina boa-menina má, e dá-lhe um brilho maroto, que faz com que Jack sorria da mesma maneira que nós, a audiência, estamos a sorrir. Ela equilibra profundidade com superficialidade, cautela com negligência, de maneira a que Sally esteja constantemente a oscilar – comandando ou sendo comandada, e às vezes ambas. Nancy Allen dá alma ao filme; Travolta dá-lhe seriedade, peso e paixão.
Jack é um homem cujos talentos se viram contra ele. Pensa que consegue fazer mais com a tecnologia do que realmente pode; ele não admite que a estranheza humana desorganize as coisas. Alguns anos mais cedo, ele trabalhava para a polícia, mas isso acabou, depois de um horrível acaso. Ele tinha posto um microfone a um agente infiltrado numa rede criminosa, mas este começou a suar, a bateria queimou-o e, quando ele a tentou arrancar, o gangster que ele tentava prender enforcou-o com o cabo desse mesmo microfone. Mesmo assim a única maneira que Jack encontra para procurar informação sobre a morte do governador, é pôr um microfone em Sally (quase que o ouvimos dizer: “Por favor meu Deus, faça com que funcione desta vez.”). Sally, que aceita a corrupção sem pensar duas vezes, sente-se atraída por Jack, porque ele sim, pensa duas vezes (ela provavelmente nem imagina quanto tempo ele pensou nisso). E ele sente-se atraído por Sally porque ela vive facilmente no mundo corrupto. Jack está dependente da tecnologia e pensa que as suas máquinas conseguem expor um assassínio. Ele acha que as pode usar para chegar ao cerne da questão, mas usa-as como escudo. E não só a sua paranóia é justificada, como as coisas são muito piores do que ele imagina – a sua paranóia é insuficiente.
Travolta – com vinte e sete anos na altura – finalmente tinha um papel que lhe permitia desfazer-se da sua pomposidade adolescente e dos seus sotaques esquisitos. Parecia claro que ele era débil e molengão em
Urban Cowboy porque não podia chegar à sua própria experiência emocional – o papel de miúdo ignorante foi concebido de maneira tão imatura, que o castrou como actor. Como Jack ele parecia mais alto e esguio. Há um momento no flashback do seu trabalho para a polícia, quando ele vê o agente pendurado pelo cabo de microfone. Ele grita, afasta-se alguns passos, vira-se e olha novamente. Quase não faz nada – ainda assim é este o tipo de representação no grande ecrã que fez com que gerações de cinéfilos venerassem Marlon Brando em
On The Waterfront : é a disponibilidade de se despir emocionalmente e o controlo em o fazer dentro da personagem (e juntamente com isso a compreensão da ruína). O corpo de Travolta está sempre no personagem deste filme; quando Jack está sozinho e atento ao que está a fazer, nós (mais do que ver) sentimos o seu compromisso com o mundo metódico das fitas, etiquetadas ordenadamente – as suas mãos são precisas e elegantes. Gravando o vento nas árvores mesmo antes do despiste do carro do governador, Jack segura o longo e fino microfone como uma batuta invocando os sons da noite; quando ouve a fita pela primeira vez, ele aponta com um lápis na direcção de onde vieram cada um dos sons. Conseguimos acreditar que Jack é dedicado à sua arte, porque Travolta é um ouvinte. A sua face ilumina-se quando ele ouve o arrulhar de menina pequenina de Sally; a sua face fecha-se quando ele ouve as queixas do patrão, Sam (Peter Boyden), que realiza sórdidos filmes “slasher “ – ele rejeita o som.
No fim, os sentimentos de dor e perda de Jack, sugerem que ele compreendeu os limites da tecnologia; como se saísse do casulo da adolescência.
Blow Out foi o primeiro filme no qual De Palma pôs de parte a conversa tonta e a alegria; desta vez não nos convida a rir com ele. Executa-o clara e directamente, pedindo-nos (confiando em nós) para responder. Em
The Fury, tentou atrair-nos para as emoções das personagens através de uma estrutura fantasiosa; em
Blow Out ele coloca a fantasia dentro da cabeça dos personagens. Havia uma vitalidade real na maldade trocista, excessiva dos seus filmes anteriores, mas este é o mais rico emocionalmente e o mais aperfeiçoado. O seu ritmo é mais hipnótico que nunca. É fácil imaginar De Palma firme, empunhando uma batuta, devido à extraordinária maneira como sons e imagens estão orquestrados.
Ver este filme é como experienciar o corpo do trabalho de Brian De Palma e vê-lo de uma outra maneira, completamente nova. Técnicas de género são cíclicas; indo além do género, De Palma correu um enorme risco; mas deu ao seu trabalho um significado diferente. O seu relacionamento com o terror em
Carrie ou
Dressed to Kill podia ser cómico porque era Pop e ele podia ultrapassar isso; com
Blow Out ele está lá. Quando vemos Jack rodeado por aquela maquinaria com que ele tenta controlar tudo, De Palma parece estar a observar, demorada e pensativamente; como se ele próprio tivesse finalmente percebido para que serve a técnica. Este foi o primeiro filme que fez, sobre as coisas que realmente lhe importam.
Blow Out começa com uma piada; no final a piada foi virada do avesso. De certa maneira, o filme é sobre o cumprimento da única tarefa designada para o homem dos efeitos sonoros no início: ele encontrou um grito muito melhor.